Quando se diz algo acerca de Meritocracia é comum haver desentendimentos sem fim. Muito disso ocorre porque, em geral, cada qual dos interlocutores entende a palavra de forma diferente, mas não explicita seu entendimento particular do termo. E, também, muitas vezes alguns destes interlocutores sequer usam uma definição unívoca para a palavra — às vezes sequer usam alguma definição minimamente coerente com o termo.
O provável culpado por esta situação é o termo 'mérito'. A palavra Meritocracia parece ter sentido óbvio, mas os desentendimentos ocorrem em nível basal, na acepção que se tem de 'mérito'. E, além disso, seja lá o que se tenha em mente ao dizer 'mérito', é mérito de quem, ou de quê? Para além desta miríade de desentendimentos por questões fundamentais, há outros, referentes ao desentendimento legítimo do que se propõe ser 'meritocracia' e como ela funciona ou por construção de espantalhos.
Recorrentemente quem reclama da 'meritocracia' não percebe que, na verdade, reclama da falta de meritocracia em casos concretos específicos. Ou de falhas técnicas identificáveis e remediáveis.
Cabe advertir que 'Mérito' pouco ou nada tem a ver com esforço pessoal, valor pessoal intrínseco ou inato, equidade, 'justiça', caráter. Por enquanto pode parecer críptico, mas a Meritocracia não avalia os indivíduos pelo que eles são ou pelo que eles fizeram, mas pelo que eles podem fazer numa situação específica. O 'mérito' avaliado não é o dos indivíduos — pelo menos não como indivíduos 'pessoais' — mas o da 'potencialidade' de resolução de um problema específico.
Então, o que é Mérito? Não é a mais ampla ou mais geral acepção do termo, mas neste contexto específico Mérito é "a capacidade objetiva (ou o mais próximo disso) de algo ou alguém desempenhar uma dada tarefa". É um entendimento instrumental do termo. Assim, tem-se que Meritocracia é uma forma de elencar a determinadas funções os agentes com o devido Mérito.
Esta é a tal da Meritocracia, uma forma de atribuir tarefas a quem se mostra capaz de realizá-las. Não é sábio que pontes sejam construídas por quem não sabe construir pontes, ou que investigações careçam de investigadores, etc. Muitas vezes reclama-se da tal Meritocracia justamente quando o contexto mostra claramente falhas na aplicação da Meritocracia.
Há problemas em potencial neste "projeto": para se determinar quem é capaz do quê são necessárias avaliações objetivas prévias. Tais avaliações podem ser mal desenhadas, mal aplicadas, avaliar (por engano ou por serem mal formuladas) quesitos diversos dos pretendidos, fraudadas, desatualizadas, etc. Mas estes são problemas sondáveis e razoavelmente remediáveis, dependendo da situação específica para serem devidamente resolvidos.
Um equívoco comum é dizer que a Meritocracia é 'injusta', que promove iniquidades, que aprofunda ou mesmo gera terríveis desigualdades sociais, ou que é excludente, etc. Entretanto a Meritocracia é independente destas questões, que podem (e provavelmente devem) ser resolvidas, ironicamente, de forma meritocrática.
No exemplo hipotético da cirurgia, usando a Meritocracia se designaria para a operação uma pessoa comprovadamente apta a tanto. Portanto seria, muito provavelmente, um médico especialista, talvez já com experiência em cirurgias cardíacas. E se poderia argumentar que apenas gente deste ou daquele 'tipo', deste ou daquele grupo populacional, tem formas de se tornar um médico especialista apto a ser um cirurgião. Muito provavelmente há mesmo um determinado grupo social específico do qual provém a maioria dos cirurgiões.
Mas se o objetivo for aumentar a abrangência das pessoas que possam tentar ser cirurgiões, então o problema a ser atacado não é a Meritocracia, mas uma complexa conjuntura sócio-econômica que restringe a grupos muito particulares a maior parte da possibilidade de se tornar um cirurgião. E ao contrário de combater a Meritocracia em si, para se resolver tal questão é necessário um pessoal apto a compreender e lidar com esta conjuntura complexa — e, portanto, precisa de uma abordagem Meritocrática.
Sendo 'mérito' algo como "a capacidade de lidar com uma tarefa definida", ele pode ou não depender de esforço pessoal e dedicação, e em níveis diferentes para cada qual dos indivíduos. Uma pessoa inteligente, bem alimentada e com acesso a um tipo específico de educação formal tem maiores chances de se tornar um cirurgião do que uma pessoa, digamos, muito mais pobre: o médico vindo de berço pobre muito provavelmente terá se esforçado mais do que a maioria dos demais médicos. Entretanto a Meritocracia independe dos esforços pessoais envolvidos, não é um mensurador de força-de-vontade, persistência e integridade pessoal: nem sequer "mede" diretamente características pessoais dos indivíduos. Meritocracia avalia tão somente se Fulano é ou não razoavelmente capaz de desempenhar determinada tarefa, ignorando como ele se tornou (ou não) capaz para tanto.